Recusa à imunização contra a Covid-19 lota hospitais e cria brecha para a Delta
RIO — Com problemas na distribuição de vacinas, quase 70% da população do país sem imunização (duas doses ou dose única da Janssen) e acossado pelo avanço da supertransmissível variante Delta, o Brasil sofre com outro agente de perpetuação da pandemia. São as pessoas que se recusam a se vacinar e, com isso, expõem a si mesmas e à sociedade a um risco que poderia ser evitado. Elas lotam as UTIs e desesperam os médicos.
Ignorância, paranoia, religião, ideologia, desinformação, egoísmo, crença em falsos tratamentos. Há uma variedade de motivos por trás dos casos que todo dia chegam a hospitais e cemitérios.
— É muito desgastante. A gente não aguenta mais ver gente morrer. Estamos exaustos. A Covid-19 pode ser controlada com vacinas. E há quem se recuse a ser imunizado, essas pessoas prolongam a pandemia, perpetuam a desgraça — afirma Ana Helena Barbosa da Silva, coordenadora médica da Terapia Intensiva do Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, a maior UTI de Covid-19 do Brasil, no Rio.
Na semana passada, o secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Daniel Soranz, disse que 95% dos internados no município são pessoas que não se vacinaram e apenas cerca de 5% dos internados tomaram ao menos a primeira dose.
Soranz está convicto que a maioria dos cariocas quer se vacinar. Segundo ele, 90% dos cariocas acima dos 40 anos tomaram a primeira dose. Mas lamenta que uma minoria continue a prejudicar o combate da pandemia.
— Onde há pessoas que não se vacinam, há internação e morte — afirma.
A coordenadora das UTIs do Hospital Gazolla salienta que o Rio está no epicentro da propagação da Delta. Segundo ela, 70% dos internados têm menos de 60 anos e a maioria não foi vacinada. A cepa em ascensão é cerca de 60% mais transmissível.
— É de rasgar o peito ver jovens morrendo. Pelo amor de Deus, se vacinem. Precisamos também que alguns líderes religiosos se conscientizem sobre as consequências trágicas de sua negação deliberada da ciência — acrescenta Silva.
A pneumologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Margareth Dalcolmo diz que no Brasil não existe um movimento antivacina, como em EUA e Europa.
— Aqui temos a ignorância politizada, que tem seus efeitos amplificados por campanhas tóxicas de desinformação nas redes sociais — destaca Dalcolmo.
— Dá uma indignação muito grande saber que pessoas que poderiam já ter se vacinado se recusaram e, com isso, prolongam a pandemia — diz a coordenadora do Gazolla, que rezou todos os dias até chegar a vez do próprio filho, de 18 anos.
Casos de negação da vacina estão pelas UTIs Brasil afora, enfatiza a chefe da Unidade de Doenças Infecciosas Parasitárias do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe-Uerj), Anna Caryna Cabral. Para ela, a pandemia amplificou um problema que já ocorria com outras doenças, alimentado pela ignorância.
No tratamento da Aids e da tuberculose, por exemplo, alguns pacientes ouvem de seus guias espirituais que estão curados, não precisam de remédios nem de vacinas. Na Covid-19 não é diferente, diz Cabral.
— Quando o doente fica bom, dizem que foi a religião, o chá. O médico leva a culpa, mas não o crédito.
Ludhmila Hajjar, chefe da UTI Covid do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, lamenta que uma minoria de pessoas prejudique o combate à pandemia.
Alerta: Mortes e internações pela Covid-19 dão sinais de alta no Brasil
O infectologista Rafael Galliez, professor da UFRJ, está preocupado com a vacinação de gestantes. Elas são grupo de risco para a Covid-19 e há uma percepção de que a Delta tem levado a um aumento de casos mais graves entre elas. Ainda assim, muitos médicos, diz, hesitam em prescrever a vacina.
— A Covid-19 é uma ameaça real e urgente, um risco infinitamente maior do que a possibilidade de efeitos adversos que qualquer vacina possa ter— alerta.
Tragédias reais
Nas estatísticas diárias de mortos e doentes graves de Covid-19 estão as tragédias de brasileiros não imunizados por vontade própria, desinformação ou infortúnio. São casos que se repetem a cada dia nas UTIs país afora. A seguir, médicos relatam algumas dessas histórias. Os nomes dos pacientes foram trocados para preservar sua privacidade.
Extermínio de idosos
Dona Doralice, de 83 anos, não aceitava ser vacinada. Seus parentes contaram aos médicos que ela achava que a vacina que era invenção do governo para matar os idosos. A Covid-19 não lhe permitiu reconsiderar. Quando chegou ao Hupe-Uerj, foi intubada e morreu em poucos dias.
José Carlos Belfort, de 42 anos, celebrou a vacina, mas não entendeu que só estaria imunizado após 15 dias da segunda dose. Assim que tomou a primeira, foi comemorar num pagode. Mas o coronavírus cruzou o seu caminho. Asmático, morreu de Covid-19 no Hupe-Uerj.
Sem salvação
Edilson Castro tinha 72 anos e acreditava piamente na pregação de seu pastor. Afinal, Castro havia tido Covid-19 leve no ano passado. Quando o pastor lhe afirmou que não precisava se vacinar, ele se recusou. Pouco depois, o coronavírus o pegou. Desta vez, com gravidade. Ele não resistiu.
Sommleier de vacina
José do Nascimento, de 50 anos, não confiava em qualquer vacina. Quando chegou sua vez, descobriu que sua “preferida” não estava disponível e voltou para casa. Só não contava que a visita de um parente lhe traria também o coronavírus. Ele está intubado na UTI do Ronaldo Gazolla.
Luto em família
Beatriz Vieira, de 22 anos, morava com os avós, que não tinham se vacinado por ter mobilidade reduzida. Era ela quem saía. Em julho, Beatriz foi infectada. Transmitiu para a avó de 80 anos e o avô de 83, que adoeceram. Os três foram internados no Gazolla. Só Beatriz e a avó voltaram.
G1